sábado, 5 de dezembro de 2020

“D”

Este conto foi contemplado com o Premio de Literatura Guarulhense e publicado na antologia de autores da cidade.



O sol está raiando e as cores do amanhecer me fazem sentir como se não houvesse nada de errado no mundo. O cheiro da terra, das árvores. O ar fresco e leve de se respirar, tão diferente da avenida barulhenta onde fica meu minúsculo apartamento.

Somos muitas mulheres saindo daqui. Em pequenos grupos vamos andando, silenciosas, observando umas às outras, trocando olhares de cumplicidade entre completas estranhas.

Alguém murmura que estão nos esperando já no fim desse caminho. Que alívio. Meus pés doem. Por mais excitante que essa jornada me pareça, estou ansiosa para tirar o tênis e mexer os dedos, sentir o sangue circulando, a pele em contato com o ar gelado da manhã. Não estou acostumada a longas caminhadas, ainda mais carregando a Y:

- Você tá pesada, viu?

Sem resposta, continuo caminhando e meus pensamentos me levam aos últimos dias. Para chegar até aqui precisei de algo que não tenho, ou não tinha: Fé.

Encontrei a Xis. Naquele dia meus pés também doíam. Preciso trocar de sapatos. Eu estava apressada e nos cruzamos no portão:

- Voce vai, né?

- Não sei, onde?

Ela me olhou meio preocupada:

- Como ninguém falou com você ainda? Claro que ninguém falou, você não sai de casa.

- E quem quer viver nessa sociedade mais do que o necessário?

- É. É exatamente sobre isso.

Na hora me senti criticada. Desnecessário tanto mistério. Na fração de segundo que esse pensamento me ocorreu, ela tirou da bolsa uma bíblia e colocou na minha mão. Seu Zé, o porteiro, estupefato.

- Irmã, quando chegar em casa abra bíblia e leia a página que marquei. Nós precisamos de você, irmã. Vai mudar a sua vida.

Pronto, entendi o que houve, virou crente.

Coloquei o presente num canto da mesa e não voltei a pensar sobre. 

Dois dias depois a Xis me ligou:

- Ei, estamos precisando de você.

- Ah Xis, pode crer, me esqueci, vários trampos... Ó, obrigada de coração, reza por mim. Agora eu não tô em busca de uma religião. Agradeço o carinho. Quem sabe um outro momento.

Ouvi um suspiro de impaciência. Que abuso!

- Eu só peço que você leia a página marcada. Vamos desligar o telefone e você vai ler agora, é uma mensagem muito importante, por favor, pela nossa amizade.

- Ta. Vou ler e te mando um zap.

- Agora.

- Ta bom.

Dentro da bíblia uma mensagem impressa num pequeno papel:

“O poder exercido por homens sobre nós é protegido por lei, pelas práticas religiosas, por  universidades, pela força policial, por poetas e artistas.


BASTA.


Há séculos tentamos dialogar com nossos opressores, e continuamos sendo a casta explorada e subjugada, pois essa sociedade misógina foi erguida sobre a exploração e morte de tantas outras que não estão aqui hoje. O nosso sangue é seu fundamento e seu sustentáculo.

Meninas, mulheres, fêmeas da espécie humana, não importa as amarras que te prendem, juntem-se a nós e vamos nos retirar dessa sociedade que nos odeia. Precisamos ser rápidas, darão pela nossa falta e vocês sabem que não pouparão armas para nos deter. Andem juntas, confiem umas nas outras.

Avante, camaradas.

D.”

O bilhete terminava assim. Mandei uma mensagem pra Xis:

- Quando?

- Partimos hoje, traga o básico para dois dias.

Separei uma muda de roupas, óculos, ração, uns biscoitos que havia assado pela manhã. Y entrou na caixa de transporte sem que eu precisasse pedir ou lutar por isso.

- Ah, então você já sabe que vamos sair?

Ela me olhou com uma cara de que só eu não sabia o que estava acontecendo até alguns minutos atrás.

Sai de casa assim, deixei quase tudo lá, coisas de um mundo onde nunca me senti pertencente. Sai como se fosse pra passar uns dias fora, mas sei que não voltarei, não depois de sentir a esperança de uma vida em liberdade.


*Bilhete inspirado na palestra da Andrea Dworkin “Eu quero uma trégua de 24h sem

estupro”.

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